blog [FRACTOSCÓPIO] Rosy Feros

24 de maio de 2002

Os maravilhosos unicórnios de Flusser



Relendo matérias antigas, me deparei com este texto do grande e saudoso Flusser - um filósofo muito mais que filósofo, nada a ver com o estereótipo que conhecemos dos filósofos. Um raro ser humano, cuja obra (rara aqui no Brasil, um pouco mais divulgada após a sua morte, em 1991) vale muito a pena conhecer.

Vilém Flusser


Este texto que destaquei entre meus guardados, "Unicórnios", é um texto clássico seu. Escrito com a sua típica ironia bem-humorada, fala de lógica como poucos falam. Achei que tinha tudo a ver publicar no blog, já que falamos de dados, informação, conhecimento e dos possíveis sistemas lógicos (e ilógicos, ou para-lógicos) inventados pelo homem... Aqui está:

"Embora não sejam, a rigor, animais domésticos, são, no entanto, extremamente úteis ao homem. A sua utilidade varia com o tempo. Na antigüidade o seu chifre servia, apropriadamente moído, como remédio contra todos os venenos. Na Idade Média o unicórnio servia como atributo da virgindade, portanto tinha utilidade pública incontestável. No romantismo e pós-romantismo foi amplamente utilizado como tema de poesias, (embora a palavra "unicórnio" não tenha muitas rimas nas línguas latinas). E atualmente é indispensável para livros de lógica e teoria do conhecimento. Com efeito: tais livros não poderiam existir, se o unicórnio não existisse, e nem, se existisse.

Para prová-lo, tomemos as seguintes sentenças:

1.A maçã é verde.
2.O sangue é verde.
3.Deus é verde
4.A liberdade é verde.
5.O presente rei da França é verde.
6.O unicórnio é verde.


A primeira sentença pode ou não ser verdadeira. A segunda é falsa. Ambas têm sentido. As demais sentenças não têm sentido. Pois isto é fácil dizer-se, e fácil verificar-se, já que, ao dizermos tais sentenças, estamos segurando a risada. Por não terem sentido tais sentenças, são ridículas e divertidas. Difícil é dizer por que tais sentenças não têm sentido.

Seria fácil se pudéssemos dizer que tais sentenças não têm sentido, porque os seus sujeitos, a saber: Deus, a liberdade, o presente rei da França e o unicórnio, não existem. Mas não podemos dizê-lo. Não se pode dizer que Deus não existe, porque seria primeiro necessário definir o termo "Deus".

Coisa impossível. Não se pode dizer que a liberdade não existe, porque a sua presença ou ausência são nitidamente constatáveis. A sentença "a liberdade é verde" não tem sentido, embora a liberdade exista. Não se pode dizer que o presente rei da França não existe, sem dizer-se, também, quando se está falando. Por exemplo: no século 17 existia um rei da França que estava presente, e a sentença era então provavelmente falsa, e tinha portanto sentido.

Mas, quanto ao unicórnio, todos estão de acordo que não existe. Portanto podemos dizer claramente porque a sentença "o unicórnio é verde" não tem sentido. O único caso nítido entre os exemplos fornecidos.

Nao fosse o unicórnio, e os livros de lógica e teoria de conhecimento não teriam sentido. Não teriam sentido, porque não poderiam exemplificar o que quer dizer: "não ter sentido". Isto seria uma pena, especialmente para professores de lógica e teoria do conhecimento.

Mas, felizmente, há unicórnio, e Sócrates é seu fiel companheiro. Assim: Socrates é mortal, e o unicórnio é verde. Viva a cultura."

[FLUSSER, Vilém. Unicórnios. Jornal Folha de São Paulo, 24/março/1972]